Quando em 1631, Jacinto Cordeiro publicou o seu extenso poema Elogio dos Poetas Lusitanos, declarou explicitamente na dedicatória que sua obra respondia ao Laurel de Apolo de Lope de Vega, por considerar que aí se destacavam poucos poetas portugueses (2017, 50). Esta iniciativa de Cordeiro revela uma tensão que atravessa séculos: a perceção de necessidade de definir um Parnaso, ou seja, a aparente urgência de construir um cânone nacional que delimitasse as figuras literárias fundamentais para a identidade estético-cultural da nação. Contudo, o processo de canonização literária, mais do que um exercício de simples valorização, está intrinsecamente ligado ao funcionamento do arquivo. O cânone é também ele um arquivo-lista que, fruto de escolhas seletivas, cristaliza e preserva determinados nomes em detrimento de tantos outros. Por outro lado, o arquivo, embora formalmente mais inclusivo, frequentemente obedece a uma lógica de seleção e hierarquia, operando igualmente na fronteira entre a preservação e o olvido. Com Foucault, cânone e arquivo podem ser compreendidos como instâncias de poder permeado pelo desejo, mas também controlando o desejo (1978, 11); portanto, a relação entrelaçada entre cânone e arquivo que atravessou a formação da história literária, suscita desejos ainda atuais. Prova disso são publicações polemicamente discutidas como O Cânone (Feijó, Tamen, Figueiredo 2020), onde se renovam as afirmações que pretendem que a qualidade literária defina os textos destacáveis. Segundo Wittko, no entanto, a ideia de que um cânone apenas reuna os textos que satisfazem elevados padrões estéticos é, na melhor das hipóteses, ingénua, ou mesmo difamatória (2002, 10). Em contrapartida, as críticas aos mecanismos que constituem o cânone têm sido cada vez mais sublinhadas, pelas suas simplificações histórico-literárias, os silenciamentos, e as implicações na consolidação de relações de poder e nos comportamentos de leitura uniformes (Muzart 1995; Lugarinho 2020; Anastácio 2022).

A tendência de construir e a de rever o cânone realizam, cada uma à sua maneira, “políticas de desejo” que, segundo a filósofa brasileira Suely Rolnik (2009, 104), estão sempre presentes nos inventários arquivísticos. No entanto, a formação e a interrupção do cânone refletem desejos diferentes com consequências e efeitos diversos. Enquanto a defesa do cânone como valor intrínseco da literatura toma por garantidos ou oculta completamente os arquivos em que se baseia, as suas críticas necessariamente revisitam os arquivos com que o cânone funciona. Neste sentido, as duas posições representam, por uma parte, o desejo do cânone e, por outra, o desejo do arquivo – desejos que podem ser diametralmente opostos, ou complexamente ligados entre si. Assim, o desejo do arquivo traz à luz estéticas alternativas que o desejo do cânone tradicional ignora, como mostram, por exemplo, a redescoberta de textos de autoras marginalizadas pela historiografia literária, como Ana de Castro Osório (Valentim 2017) ou Carolina Maria de Jesus (Delcastagnè 2023), ou ainda projetos de recuperação feminina e afrodescendente, como o Literafro – portal de literatura afrobrasileira, o Mulheres Escritoras no tempo de Estado Novo, ou o projeto transoceânico Literatura de Mulheres: memórias, periferias e resistências no atlântico luso-afro-brasileiro, que compreende a escrita como capacidade de ação.

O desejo do arquivo afeta, então, o desejo do cânone, e vice-versa. O arquivo, enquanto local de armazenamento e recuperação, torna-se, por isso, central nos adventos e apagamentos dos cânones. Para Derrida, o momento da definição do cânone não é arbitrário na história arquivística, mas é um acto inaugural estilizado como “descoberta” que estabelece um arquivo “essencial” do qual sempre existem guardiões e leitores (masculinos) legítimos (1995, 20). Este processo afasta e oculta: aquilo que não entra no cânone pertence às margens, relegando-se ao esquecimento ou à invisibilidade, inclusivamente dentro do arquivo. Para Aleida Assmann, cânone e arquivo são dois polos dentro do mesmo espectro, mas enquanto o cânone reflete uma prática ativa, deliberada e seletiva, o arquivo surge como um espaço passivo, “a meio caminho entre o cânone e o esquecimento” (2016, 81). Foucault, no entanto, pensa o arquivo, embora passivo na sua acumulação, como um dinâmico sistema de saber coletivo, sujeito à constante formação e transformação de afirmações (1972, 130). Assim, as regulações e funcionamentos do cânone e do arquivo “transformam o desejo em discurso” (Foucault 1978, 21, trad. própria). Em suma, a formação do cânone literário é indissociável a um “desejo de inventário” (Rolnik 2009, 104) inerente à política arquivística que exclui textos e figuras que não se encaixam nas normas estéticas ou sociais dominantes (Lugarinho 2020, 258; Figueiredo 2020; Klobucka 2020). O respetivo desejo torna tanto o arquivo como o cânone em espaços de controlo, mas simultaneamente de revisitação, ecoando nos debates sobre o valor estético ou sobre a reparação histórica. Os arquivos coloniais, por exemplo, guardam uma parte significativa de documentos representativos da violência invasiva, enquanto o cânone literário ignora, por sua vez, frequentemente produções e processos textuais e artístios que não sejam escritos em português, em letras latinas, ou que reflitam uma epistemologia não europeia. Devido a cenários como estes, Sueley Rolnik reorienta o foco para como o desejo, consciente ou inconsciente, molda e valoriza o que é preservado, e quais são as experiências sensíveis – em vez de opressivas – que podem ser ativadas no processo.

Esta secção interessa-se, portanto, particularmente pelo desejo de formar ou revisitar o cânone, e o desejo de ocultar ou revelar os arquivo no qual o cânone se baseia, investigando as interações entre os dois, mas também as lacunas que abrem, bem como as reparações que permitem ou impedem. Para isso, propõem-se as seguintes linhas de trabalho:

1) Interações: Na política do desejo, como se relacionam o cânone e o arquivo em termos de efeitos estéticos e posições de poder? Que desejos estão na base da construção ou interrupção do arquivo e do cânone? De que maneiras os dois diferem, em que coincidem, como interagem? Onde é que o cânone domina o arquivo e onde é que o arquivo interrompe o cânone ou emerge fora dele? Como funciona a seleção de determinados textos e outros formatos artísticos e culturais? Enfim: que dinâmicas existem entre o desejo do cânone e o desejo do arquivo?

2) Lacunas: Que vazios produz o política do desejo? Neste contexto, a secção questiona especificamente as dinâmicas de recuperação e revalorização de conhecimentos e imaginações, e as suas manifestações textuais, visuais e artísticas, invisíveis no arquivo e, portanto, excluídos do cânone dominante, revisitando as leituras relativas à literatura feminina, feminista, dos povos originários, contracolonial, queer ou “diversa”.

3) Reparações: Como é que a análise da política do desejo pode informar e reforçar a reparação de estruturas de violência patriarcal ou imperial? Que experiências sensíveis podem emergir de uma abordagem reflexiva e crítica aos arquivose ao cânone? Como pode o “desejo de arquivar […] ativar a memória da experiência sensível” (Rolnik 2009, 97) na discussão do cânone? Que leituras sensíveis estimulam os textos marginalizados tanto pelo cânone quanto pelo arquivo? Que textos e nomes (não) canonizados habitam, hoje ou no passado, os arquivos – seja de forma literal ou metafórica – que podem “colocar em crise” (Rolnik 2009, 103) os cânones lusófonos?

Pedimos, por favor, que enviem as propostas de comunicação (aprox. 250-300 palavras), bem como uma pequena biografia (máx. 100 palavras), até ao dia 15 de Março de 2025 para a organização da secção:

Dr. Pedro Monteiro: monteirosantos@em.uni-frankfurt.de
Prof. Dr. Romana Radlwimmer: radlwimmer@em.uni-frankfurt.de

Bibliografia:

Anastácio, Vanda (2022). “Onde estão as mulheres? Um percurso didático pela história da literatura portuguesa”. Convergência Lusíada, 48, 12-38.
Assmann, Aleida (2016). “Cânone e arquivo”. Trad. Maria Adelaide de Castro Ramos. In F. M. Alves, L. A. Soares & C. V. Rodrigues (Orgs.), Estudos de Memória. Teoria e Análise Cultural (pp. 75-86). Famalicão: Húmus.
Cordeiro, Jacinto (2017). Elogio dos Poetas Lusitanos, ed. Maria Lucília Gonçalves Pires. Porto: Citcem/Edições Afrontamento.
Dalcastagnè, Regina (2023). Carolina Maria de Jesus: uma voz insubmissa na literatura brasileira. Brasília: Instituto Guimarães Rosa/Fundação Alexandre de Gusmão.
Derrida, Jacques (1995). “Archive Fever: A Freudian Impression”. Trad. Eric Prenowitz. Diacritics, 25/2, 9-63.
Feijó, António M., Figueiredo, João R. e Tamen, Miguel. Eds. (2020). O Cânone. Lisboa: Tinta da China.
Figueiredo, João R. (2020). “Cânone 3”. In A. M. Feijó, J. R. Figueiredo & M. Tamen (Eds.), O Cânone, (pp. 173-192). Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Tinta da China.
Foucault, Michel (1972). The Archeology of Knowledge and The Discourse on Language. Trad. A. M. Sheridan Smith. New York: Pantheon Books.
Foucault, Michel (1978). The History of Sexuality. Vol. 1. Trad. Robert Hurley. New York: Random House.
Klobucka, Anna M. (2020). “Cânone 2”. In A. M. Feijó, J. R. Figueiredo & M. Tamen (Eds.), O Cânone, (pp. 165-171). Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Tinta da China.
Lugarinho, Mário César (2020). “Cânone e Crítica: Superações”. Cadernos de Literatura Comparada, 43, 255-267.
Muzart, Zahidé Lupinacci (1995). “A questão do cânone”. Anuário de Literatura, 3, 85-93.
Rolnik, Suely (2009). “Furor de arquivo”. Arte & Ensaios, 19, 96-105.
Tamen, Miguel (2020). “Cânone 4”. In A. M. Feijó, J. R. Figueiredo & M. Tamen (Eds.), O Cânone, (pp. 523-526). Lisboa: Fundação Cupertino de Miranda/Tinta da China. 4
Valentim, Jorge Vicente (2017). “Uma literatura verdadeiramente feminina: Ana de Castro Osório e a germinação do pensamento femininsta em Portugal no século XIX”. SOLETRAS, 34, 177-198.
Wittko, Simone (2002). “Literatur-Kanon als Invisible Hand-Phänomen”. In Literarische Kanonbildung (pp. 9-24). München: Edition Text+Kritik.

Beitrag von: Pedro Monteiro

Redaktion: Robert Hesselbach